Era 1823, armas em punho, mais uma Maria brasileira fez história. Alheia à definição de ‘luta por igualdade de gêneros’, em uma época onde a mulher era vista apenas como reprodutora e propriedade do pai ou marido, ela se alistou ao Exército sob um pseudônimo masculino e gravou o nome Maria Quitéria como o da primeira mulher a entrar em combate no Brasil, em busca da manutenção da independência do país. Em 2015 ao adentrar estruturas militares foi possível ver, ainda que timidamente, o legado da bravura de Maria Quitéria. Mulheres e homens dividem o trabalho, outrora um ambiente em que a presença feminina era vista com desconfiança.
Ainda que a evolução já esteja em plena marcha, ainda há um longo caminho a ser percorrido. E esta afirmação não é fácil de refutar tendo em mãos os dados apresentados pelo Ministério da Defesa na última semana. Um levantamento mostrou a atuação delas nas três Forças Armadas: Marinha, Aeronáutica e Exército. Como os números não mentem, é possível perceber que elas estão ganhando terreno. A participação nem de longe se equipara ao contingente masculino, que, em seu menor número, alcança uma superioridade de mais de 85%.
Onde elas estão?
As mulheres estão mais presentes na Aeronáutica, com um contingente de 9.322, cerca de 13% do total do efetivo, que é de 67.614. A Marinha vem em seguida, com um total de 6.922 mulheres de um efetivo total de 68.604, ou seja, 10 %. Em último lugar, muito abaixo das outras duas forças, está o Exército, em que apenas 3,02% do efetivo é de mulheres, cerca de 6.009 em todo o território nacional, enquanto o efetivo total é de 186.722. A presença de mulheres na Marinha do Brasil remonta a 1980, com a regulamentação do ingresso feminino por lei.
A Força Aérea Brasileira (FAB) criou o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica (CFRA) em 1981, quando ingressaram as primeiras profissionais, principalmente psicólogas, enfermeiras, analistas de sistemas, assistentes sociais, fonoaudiólogas, nutricionistas e biblioteconomistas. Talvez a demora do Exército em abrir as portas para mulheres explique a baixa representatividade. Ocorre que este cenário vem mudando. A primeira turma de formação com participação feminina foi concluída há 23 anos, na Escola de Administração do Exército. Eram 49 alunas.
Em 1996, a Força Terrestre instituiu o serviço militar feminino voluntário para médicas, dentistas, farmacêuticas, veterinárias e enfermeiras de nível superior. Nesse mesmo ano, incorporou a primeira turma de 290 voluntárias para prestarem o serviço militar na área de saúde. De lá para cá, o volume de mulheres no Exército só aumentou, alcançando o patamar de 5.400 integrantes.
Conquistando espaços
Assim como Maria Quitéria, Claudirene Barbosa Soares também mantém seu nome na vanguarda. Aos 26 anos, ela foi a primeira mulher a exercer a função de técnicamecânica de material bélico no Exército Brasileiro, servindo no 3º Regimento de Cavalaria Mecanizado (RCMec), em Bagé. Ela recorda que a oportunidade surgiu após ver um edital em que o Exército abriu vaga para técnicomecânico de carreira. Ao ler as especificações, descobriu que era destinada apenas ao sexo masculino. Esperou mais um tempo e descobriu um novo edital para o posto de técnico-mecânico, mas dessa vez a vaga era para sargento temporário. Como não havia designação de gênero, resolveu tentar a sorte. E se sobressaiu na prova, tanto que desde o início do ano passado seu uniforme de trabalho é camuflado.
Ela acredita que sua chegada até pode ter sido uma surpresa para os colegas, Não que tenha notado, pois mesmo na área civil, fora dos muros do RCMec, a área que escolheu para atuar é, notadamente, um reduto masculino. “Eu já havia trabalhado como técnicamecânica fora do Exército e meus colegas eram todos homens. Nunca tive problema e quando cheguei aqui já estava acostumada”, pondera. Os cabelos loiros, caprichosamente presos em um coque, e o batom rosa, que enfeita o rosto da jovem, podem dar a errônea ideia de fragilidade. Mas as mesmas mãos que ajeitam o penteado e aplicam habilmente a maquiagem, são capacitadas para fazer a manutenção e conserto de material bélico, como os pesados tanques de guerra.
“Me sinto orgulhosa por ter conseguido entrar. Queria muito isso e me esforcei. Depois fiquei sabendo que fui a primeira mulher a ocupar o posto que ocupei, e isso me deixou ainda mais orgulhosa”, afirma ela, que atualmente está designada para um posto administrativo. Ao contrário da vaga ocupada por Claudirene, a maioria das mulheres se concentra nas áreas da saúde e comunicação. Como é o caso da bajeense Ritiele Nunes de Souza Monteiro, 24 anos, e das cariocas Raiane Nogueira da Silva, 21 anos, e Beatriz Góes, 23 anos. As três são técnicas em enfermagem. São sargentos de carreira. As duas primeiras atuam também no RCMec. Beatriz na 3ª Brigada de Cavalaria Mecanizada. Ingressaram há pouco tempo na corporação, cerca de dois anos, mas já puderam sentir a diferença de pensamento e da adaptação das forças armadas à presença feminina.
Beatriz revela que na sua formação, no 1º Grupo de Artilharia Antiaérea, no Rio de Janeiro, a estrutura já estava totalmente adaptada às alunas. Entretanto, foi desbravadora em uma das unidades onde atuou, também no Rio de Janeiro. “Minha turma foi a primeira que inseriu mulheres nessa unidade. Mas foi tranquilo. Às vezes eles não sabiam como nos tratar, se tinham que ser mais gentis por sermos mulheres. Mas o tratamento sempre foi muito respeitoso”, comenta. Como técnicas em enfermagem, as militares têm o mesmo treinamento físico. Participam dos mesmos treinos e provas e, inclusive, dos temidos ‘campos’. De diferente, apenas os banheiros e dormitórios. “Nós acompanhamos as provas de campo para atender caso alguém passe mal. Também fazemos a corrida e prova de tiro. A única diferença entre nós é a estrutura, que é montada separada para as mulheres”, conta Ritiele.
Raiane lembra que, quando ingressou no Exército, não chegou a sofrer resistência, mesmo que alguns oficiais mais antigos tenham tido maior dificuldade em entender a presença de mulheres na força. Mas isso não acontece com os novos militares, que já convivem, desde a formação, com a presença feminina. Ritiele destaca que, independente de gênero, a hierarquia deve ser respeitada. “Isso independe de ser mulher ou homem, o que vale é a hierarquia e todos nós aprendemos a respeitála”, diz. Ela afirma que nunca teve sua autoridade questionada ou sofreu preconceito dentro do local de trabalho. As quatro são categóricas em aprovar as normas de apresentação pessoal.
A regulamentação não coíbe a vaidade, mas impõe limites. Cabelo comprido? Ok. Mas deve ser mantido preso em coque com rede. Maquiagem, apenas o suficiente para dar um ar mais saudável ao rosto, em tons nude e rímel. O batom e esmalte também seguem a linha discreta, apenas rosa ou translúcido. “Aqui não somos só mulheres, somos militares e precisamos ter sempre esta postura e manter a disciplina”, comenta Ritiele.
FONTE: Jornal Minuano, Por Melissa Louçan